Teoria das crises: tendência à queda da taxa de lucro e limites da demanda/ uma síntese

[Por Santiago Marimbondo]

A crise estrutural do capitalismo no final da primeira década do novo século recolocou na ordem do dia para aqueles que buscam compreender as formas contraditórias de desenvolvimento do modo de produção burguês debater as causas e elementos fundamentais que levam às crises econômicas no sistema.

Apesar de essa ser questão fundamental da economia, como forma teórica e ideológica que busca compreender a realidade do sistema capitalista, debatida por grande parte dos teóricos, dos diferentes campos e escolas, que inscreveram seus nomes na história do pensamento econômico, não há nem de longe uma confluência e síntese nos debates. Esse ainda é um dos grandes quebra-cabeças nesse espaço do conhecimento, dentro das ciências sociais.

Entre os economistas que se reivindicam marxistas existem diferentes interpretações e visões sobre quais seriam os elementos fundamentais que explicam as crises estruturais do sistema e sua recorrência. A publicação de manuscritos inéditos escritos por Marx no contexto da nova edição da MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe, as obras completas dos revolucionários, na sigla em alemão) levaram a uma série de polêmicas entre os interpretes da obra do mouro sobre qual seria sua posição em relação a essa questão tão essencial. A grande crise capitalista que vivenciamos só fez aumentar a aspereza e agudeza dos debates.

Alguns interpretes acadêmicos da obra do revolucionário alemão, aproveitando do status que lhes dá o fato de estarem ligados diretamente a esse projeto tão fundamental que é a MEGA², passaram a polemizar com a teoria formulada por ele em seus manuscritos escritos entre 1864-65 (que foram a base para a edição de Engels do livro III do ‘Capital’), como se essa teoria não fosse defendida ali de forma clara e enfática por Marx. Já mostramos em outro artigo¹ como essa polêmica contra as posições de Marx por parte de acadêmicos “marxistas” é errada, assim não insistiremos nesse ponto aqui.

Nesse artigo o que se buscará explorar é a conexão entre a teoria da tendência à queda da taxa de lucro no capitalismo, formulada pelo mouro no livro III de sua grande obra, com outro aspecto explicativo fundamental das crises capitalistas, os limites da demanda efetiva engendrados de forma inerente dentro do sistema. Para isso nos apoiaremos tanto em algumas citações dos livros 2 e 3 do ‘Capital’ e dos ‘Grundisses’ como em reflexões sobre as transformações no processo produtivo impostas pela introdução de novas tecnologias para a produção como a robótica, a inteligência artificial, etc.  

Alguns elementos metodológicos introdutórios

As diversas e tradicionais críticas a teoria de Marx de que existe uma tendência à queda da taxa de lucro com o desenvolvimento do capitalismo, sua frequência e constante renovação, mesmo entre autores que se reivindicam marxistas, mostram, no entanto, que não é apenas o limite da posição de classe (pequeno-burguesa) dos intérpretes, ou uma incapacidade de entender a lógica do argumento (muito dada por essa posição de classe, e não por uma qualquer falta de inteligência), o elemento que explica essas críticas frequentes na tradição do debate sobre o pensamento do mouro, mas que próprio argumento, da maneira que foi construído pelo revolucionário alemão, apesar de sua coerência e elegância, ainda é incompleto, penso. O argumento, sua lógica, parece por demais abstrato, não ligado aos fenômenos reais, as manifestações concretas na realidade social, dos movimentos mais distantes e expressões da lei do valor.

É preciso partir de pressupostos todos aparentemente bastante abstratos para compreender como o próprio desenvolvimento das relações capitalistas, sua aplicação cada vez mais extensa e profunda da tecnologia à produção da riqueza, levam, contraditoriamente, a uma tendência à queda da taxa de lucro (por exemplo, que apenas o trabalho humano cria valor, que o valor é o determinante dos preços de produção que se manifestam concretamente no mercado capitalista, que a taxa média de lucro é manifestação fenomênica da taxa de mais-valor, etc).

Apesar de todos esses pressupostos serem demonstrados com muito rigor ao longo da obra, na medida em que sua compreensão exige esforço teórico bastante profundo, é fácil dissociar esses elementos, fazendo críticas parciais a consequências desagradáveis dentro de determinados pontos de vista de classe (pois é uma consequência onerosa para setores catedráticos pequeno-burgueses que se aproximam do marxismo que a teoria que professam leve necessariamente a consequências revolucionárias, como é o caso da teoria da tendência à queda da taxa de lucro. Melhor, então, escamotear esse fato, dentro desse ponto de vista).

Buscar ligar os aspectos mais gerais e abstratos da teoria aos fenômenos mais diretos e imediatamente sensíveis da realidade é fundamental metodologicamente como forma de comprovação teórica dos ganhos conseguidos pelo pensamento científico. Na medida que nas ciências sociais não contamos com os microscópios, telescópios, reagentes químicos com que contam os pesquisadores da natureza, para nossa investigação aspecto metodológico chave para a confirmação dos pressupostos teóricos mais gerais e abstratos é a construção de uma homologia, de uma correspondência, entre eles e fenômenos concretos e imediatamente sensíveis. Numa concepção materialista de teoria as categorias mais abstratas, gerais, não se contrapõem àquelas que refletem os fenômenos mais imediatos e sensíveis; também as primeiras refletem/projetam realidades materiais, concretamente existentes. Sua maior abstração e generalidade reflete o fato de que existe sempre uma distância entre a manifestação fenomênica da realidade e sua essência fundamental (base da própria necessidade de emergência do pensamento científico, pois se essência e aparência coincidissem imediatamente a própria ciência seria supérflua).

Porém, é sempre necessário religar os aspectos mais gerais e abstratos da teoria com os fenômenos mais imediatos e sensíveis, empiricamente verificáveis, da realidade, pois do contrário a teoria se tornaria uma elucubração especulativa. Esse é o método que Marx utiliza no ‘Capital’. Não por acaso a categoria basilar, fundante, que inaugura mesmo a obra, é aquela mais imediatamente sensível, empírica, com a qual todos os seres humanos que vivem no capitalismo tem contato constante, quase permanente, a mercadoria.

A impossibilidade, no entanto, que teve Marx de ligar sua teoria da tendência à queda da taxa de lucro (que ele diz ser a “lei mais importante da moderna economia política”) com fenômenos mais imediatamente sensíveis está relacionada a própria incompletude da obra. É mais que conhecido que a grande obra do mouro ficou inacabada; uma teoria sistemática e abrangente das crises capitalistas foi um dos elementos que mais sofreu com essa incompletude.

Evidente que existem inúmeros apontamentos e colocações extremamente importantes para a construção de uma teoria sistemática e abrangente das crises na obra de Marx (não só no ‘Capital’ mas em todos os manuscritos que são parte desse grande projeto teórico), mas eles não são sistematizados num todo coerente e acabado, tendo elementos que podem aparecer, à primeira vista, inclusive como contraditórios. É esse o fator que leva as constantes disputas dentro da tradição de interpretação de sua obra, entre escolas distintas de pensamento em relação a teoria das crises que poderia se deduzir de suas construções (a teoria do subconsumo, sobre-acumulação, da queda tendencial da taxa de lucro, da desproporcionalidade).   

Se é claro que as grandes crises capitalistas são sínteses de todas as contradições do sistema, momentos em que essas contradições explodem conjuntamente, fica evidente também que uma teoria sistemática e abrangente das crises só é possível como teoria multicausal, onde todos os aspectos contraditórios que levam às crises do sistema são refletidos na teoria como um todo sistemático e coerente. O problema é não produzir uma teoria multicausal das crises que seja um justaposição superficial dos diferentes elementos e interpretações, que busca dar ar de completude, quando na verdade é apenas um amálgama incoerente.

O que se buscará nesse escrito é ligar, de forma coerente e sistemática, com profundidade teórica, dois aspectos centrais da teoria das crises capitalistas marxista, a teoria da queda tendencial da taxa de lucro, com a teoria que relaciona as crises aos limites da demanda efetiva que gera inerentemente o capitalismo, dada a desproporção entre a capacidade de consumo dos produtores diretos e o mais-valor criado em sua atividade produtiva, e ambos os aspectos com o fenômeno empírico bastante evidente, e que se aprofunda sobre-maneira com a introdução da robótica e da inteligência artificial na produção, do desemprego tecnológico massivo, a substituição dos trabalhadores diretos por instrumentos tecnológicos cada vez mais avançados, na produção da riqueza.

A pretensão aqui, não pequena, nesse sentido, é completar e desenvolver esse aspecto da teoria de Marx sobre as crises capitalistas. Penso no entanto que rendemos grande homenagem a nosso mestre ao tentar tanto desenvolver e aprofundar determinados aspectos de sua obra que ficaram inacabados quanto pensar as contradições do presente a partir de seus escritos, mais de 150 anos depois de sua formulação.

Não existe uma contradição insuperável entre os limites da demanda inerentes ao sistema capitalista e sua tendência à queda da taxa de lucro

Na história da interpretação da teoria de Marx sempre houve uma oposição bastante marcada entre os que defendiam como elemento chave para explicar as crises capitalistas os limites na demanda efetiva que se produzem dentro do capitalismo, pela própria lógica do sistema, e os que, se contrapondo a esse primeiro elemento, buscam explicar as crises do sistema pela tendência que se produz nele internamente à queda da taxa de lucro, como se esses dois pontos fossem necessariamente mutuamente excludentes. Contudo, ao contrário de uma exclusão e contraposição mútua, ambos os elementos só são compreensíveis em sua profundidade e todas as suas consequências na medida em que são integrados e relacionados de forma sistemática.

Se uma interpretação superficial e mecânica da teoria dos limites da demanda efetiva no capitalismo como elemento chave que explica as crises capitalistas – como a produzida por Sismondi ainda no começo do século XIX, pelos populistas russos na década de 1890², e que tem como grande representante dentro do marxismo Rosa Luxemburgo³; isso ignorando a mais que rasteira teoria subjetivista das crises produzida por “lord” Keynes[4], que explica as crises por uma suposta propensão subjetiva à segurança dos “agentes econômicos”, uma suposta “preferência pela liquidez” – é evidentemente um erro, pois se a incapacidade dos trabalhadores de consumir todo o valor dos produtos produzidos fosse o fator central que explica as crises de forma imediata, o capitalismo viveria em crise permanente e o próprio sistema seria impossível, como Marx já mostrava no ‘Anti-Dhuring’ (lembrar que os capítulos sobre economia na obra foram escritos diretamente por Marx, a pedido de Engels, como o segundo nos informa no prefácio do livro), isso não exclui que os limites da demanda sejam elementos centrais a se levar em consideração quando buscamos pensar as contradições no modo de produção burguês.

“Contradição no modo de produção capitalista: os trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado. Mas como vendedores de sua mercadoria – a força de trabalho –, a sociedade capitalista tem a tendência de reduzi-los ao mínimo do preço. Contradição adicional: as épocas em que a produção capitalista desenvolve todas as suas potencialidades mostram-se regularmente como épocas de superprodução, porquanto as potências produtivas jamais podem ser empregadas a ponto de, com isso, um valor maior poder não só ser produzido como realizado; mas a venda das mercadorias, a realização do capital-mercadoria e, assim, também a do mais-valor, está limitada não pelas necessidades de consumo da sociedade em geral, mas pelas necessidades de consumo de uma sociedade cuja grande maioria é sempre pobre e tem de permanecer pobre. Isso pertence, no entanto, à seção seguinte”

Marx, Karl; ‘O Capital’ livro II. Anotação de Marx adendada como nota de rodapé por Engels ao capítulo 16 ‘A rotação do capital variável’.

O problema dos teóricos sub-consumistas é entender como fator chave para a explicação das crises uma suposta impossibilidade de realização de todo o valor contido nas mercadorias, dado os limites na demanda dos trabalhadores que é pressuposto da própria existência do sistema capitalista, quando não é esse o mecanismo central que liga esse limite da demanda e contração (relativa) do mercado consumidor com o desenvolvimento do sistema às crises no modo de produção burguês. A questão chave é como ligar essa contração (relativa) do mercado consumidor e os limites da demanda que se produzem com a tendência no capitalismo à queda da taxa de lucro, mesmo com a realização de todo o valor contido nas mercadorias.

O erro unilateralmente oposto, por outro lado, por parte dos teóricos que explicam as crises capitalistas como sendo determinadas centralmente (ou exclusivamente) pela tendência à queda da taxa de lucro com o avanço tecnológico é não entender que os limites da demanda, a contração (relativa) do mercado consumidor, com o aumento da composição orgânica do capital, são a forma de realização mais imediata, empiricamente sensível, manifestação fenomênica, dessa tendência geral.

Sem a contração do mercado consumidor, a que leva o desemprego tecnológico causado pelo aumento da composição orgânica do capital, é impossível entender o motivo que leva os capitalistas na prática de sua atividade social a terem que diminuir sua taxa de lucro dada a introdução de novas tecnologias no processo produtivo. A teoria que explica esse processo, ligada ao fato de que apenas o trabalho abstrato cria valor, aparece como uma abstração sem nenhuma conexão com a realidade concretamente vivida pelos agentes econômicos que interagem de forma prática dentro do sistema, pois em seus cálculos contábeis concretos os capitalistas não partem do pressuposto de que apenas o trabalho abstrato é o determinante para a criação do valor econômico; muito pelo contrário, para o cálculo empírico dos preços de produção que determinam na prática o preço de mercado de suas mercadorias eles levam em consideração a “contribuição” de todos os “fatores de produção”. Então qual é o mecanismo prático, empiricamente sensível, mesmo para os capitalistas, que impõe que essa lei econômica invisível a olho nu deva ser sentida, de forma a determinar concretamente a diminuição de sua taxa de lucro?

Esse mecanismo empírico, sensível para os capitalistas, que impõe na prática a necessidade de que com o aumento da composição orgânica do capital, dada a introdução de novas tecnologias na produção, eles tenham que diminuir sua taxa de lucro é exatamente a contração relativa do mercado consumidor a que leva o desemprego tecnológico causado por essa mudança na composição orgânica do capital. Na medida em que dentro do capitalismo a gigantesca maioria da sociedade é composta de trabalhadores proletarizados, assalariados (e dessa forma também a maioria gigantesca dos consumidores) o desemprego estrutural e cada vez maior causado pelo avanço tecnológico restringe relativamente o mercado consumidor, o número de pessoas aptas a consumir, não por que não tenham necessidades, tanto orgânicas quanto sociais, de consumo, mas porque não tem a capacidade monetária de transformar essa necessidade de consumo em algo efetivo dentro da lógica desse sistema. A essa primeira contradição se adiciona o fato de que essas novas tecnologias incorporadas à produção de riqueza são capazes de produzir muito mais num menor espaço de tempo, o que aumenta de forma ainda mais aguda a desproporção entre a oferta de mercadorias e sua demanda real, efetiva, dentro dos pressupostos do capitalismo.

A partir disso, a única maneira de os capitalistas venderem suas mercadorias, realizarem o processo de transformação de seus produtos na forma geral de expressão da riqueza social no capitalismo, o dinheiro (e essa transformação é pressuposto da especificidade do modo burguês de produção da riqueza) é, dada a lei da oferta e demanda (que de forma isolada é tão cara a economia vulgar burguesa como explicação única para os processos econômicos, dada a “utilidade marginal” dos produtos, mas que integrada como forma fenomênica de expressão de processos mais profundos é também aspecto central da teoria marxista), a diminuição do preço de suas mercadorias, até que esse preço adapte a oferta de valores contidos nas mercadorias tomadas de conjunto à demanda social total da comunidade.

É dessa forma que agem os limites da demanda para determinar (de forma recíproca e dinâmica) as formas de produção, apesar de o segundo elemento ser o determinante em última instância de todo o processo do metabolismo econômico capitalista. As formas de consumo, a distribuição e circulação da riqueza, organizadas dentro do sistema capitalista, não são expressões passivas da forma de produção, mas são também elementos ativos e determinantes, que influenciam e transformam a produção, apesar dessa ser o momento determinante de todo o complexo, como Marx já mostrava em sua introdução aos ‘Grundrisse’:

“O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade. A produção estende-se tanto para além de si mesma na determinação antitética da produção, como sobrepõe-se sobre os outros momentos. É a partir dela que o processo sempre recomeça. É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos. P. ex., quando o mercado se expande, i.e., a esfera da troca, a produção cresce em extensão e subdivide-se mais profundamente. Com mudança na distribuição, modifica-se a produção; p. ex., com a concentração do capital, com diferente distribuição da população entre cidade e campo etc. Finalmente, as necessidades de consumo determinam a produção. Há uma interação entre os diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico.”

Marx, Karl; ‘Grundrisse’ – ‘Introdução’. Edição Boitempo página 76

É através desse mecanismo social concreto, sensível diretamente mesmo aos olhos cegos do burguês, que a lei do valor se impõe, independente do conhecimento do capitalista sobre ela, mesmo que ele a negue, mesmo que sua vontade subjetiva (e de seus ideólogos) busque contradizê-la. Se o capitalista não diminui o preço de mercado de suas mercadorias dada a diminuição relativa do mercado consumidor ele não conseguirá vendê-las e assim converter seu valor potencial em valor socialmente reconhecido, algo que só se efetiva com sua transmutação na forma equivalente geral do valor. Esse processo todo, no entanto, é apenas manifestação fenomênica, aparente, da dinâmica fundamental de que o valor mesmo das mercadorias é menor agora, dada sua maior composição orgânica de capital e consequente menor incorporação de trabalho vivo.

A forma do valor, limites da demanda e tendência à queda da taxa de lucro

Os teóricos marxistas que atribuem todos os fenômenos econômicos à produção, como se as dimensões da distribuição, da circulação, do consumo, tivessem influência zero sobre os movimentos contraditórios do sistema capitalista de metabolismo social não começaram a entender sequer o b-a-ba, os pressupostos, da diferença da teoria de Marx e sua ruptura radical com a teoria do valor de David Ricardo e dos clássicos de conjunto. A teoria do valor de Marx busca superar a unilateralidade e a-historicidade da teoria de Ricardo e de sua escola e mostrar que a forma capitalista de produção não é forma universal de produção, a historicidade estando limitada aos outros aspectos como a distribuição, a circulação e o consumo (vide sua crítica ao ricardiano John Stuart Mill, na introdução já citada aos ‘Grundrisse’), mas que a forma mesma de produção e metabolismo social no capitalismo é historicamente determinada. Essa determinidade histórica, contudo, só é compreensível se incorporamos a relação dinâmica entre a dimensão e esfera da produção e as demais esferas (distribuição, circulação e consumo da riqueza) que sintetizadas formam o complexo que é o modo de produção burguês de conjunto.

Na seção 3 do livro 3 da grande de sua obra, onde exatamente ele discute a lei da queda tendencial da taxa de lucro, Marx mostra de maneira a não deixar dúvida como os limites da demanda e as formas de distribuição, circulação e consumo da riqueza, são elementos importantes na explicação dos fundamentos das crises capitalistas. É uma pena que insights tão valiosos não tenham sido desenvolvidos de forma mais sistemática pelo mouro:

“Se não se conseguir vendê-la [a mercadoria, adêndo meu] ou se conseguir apenas em parte ou a preços inferiores aos de produção, o trabalhador terá sido explorado, certamente, mas sua exploração não se terá realizado como tal para o capitalista, não terá alcançado em absoluto a realização do mais-valor espoliado ou o terá alcançado apenas parcialmente, podendo inclusive acarretar a perda parcial ou total de seu capital. As condições da exploração direta e as de sua realização não são idênticas. Elas divergem não só quanto ao tempo e ao lugar, mas também conceitualmente. Umas estão limitadas pela força produtiva da sociedade; outras, pela proporcionalidade entre os diversos ramos de produção e pela capacidade de consumo da sociedade. Essa capacidade não é determinada pela força absoluta de produção nem pela capacidade absoluta de consumo, mas pela capacidade de consumo sobre a base de relações antagônicas de distribuição, que reduzem o consumo da grande massa da sociedade a um mínimo só suscetível de variação dentro de limites mais ou menos estreitos. Além disso, ela está limitada pelo impulso de acumulação, de aumento do capital e da produção de mais-valor em escala ampliada. Essa é uma lei da produção capitalista, lei dada pelas constantes revoluções nos próprios métodos de produção, pela constante desvalorização do capital existente acarretada por essas revoluções, pela luta concorrencial generalizada e a necessidade de melhorar a produção e ampliar sua escala, apenas como meio de autoconservação e sob pena de sucumbir. Por isso, o mercado precisa ser constantemente expandido, de modo que seus nexos e as condições que os regulam assumam cada vez mais a forma de uma lei natural independente dos produtores, tornem-se cada vez mais incontroláveis. A contradição interna procura ser compensada pela expansão do campo externo da produção. Quanto mais se desenvolve a força produtiva, mais ela entra em conflito com a base estreita sobre a qual repousam as relações de consumo.”

Marx, K. ‘O Capital’, livro III; edição da Boitempo, pág. 244

A produção do valor, assim, apesar de se dar inteiramente na esfera da produção da mercadoria (e em nenhum sentido, zero mesmo, na esfera da distribuição ou circulação) só é possível se é uma produção que pressupõe uma determinada forma de distribuição, de circulação e consumo da riqueza produzida; quem vê nisso uma contradição insuperável precisa urgentemente de uma aula sobre os pressupostos básicos do pensamento dialético.

Assim, os limites da demanda efetiva são parte fundamental da teoria marxista das crises não porque o capitalismo produza uma inerente incapacidade de realização do valor total das mercadorias dada a desproporção entre a capacidade de consumo dos produtores diretos e o efetivo valor que eles criam em sua atividade produtiva (apesar de obviamente não se poder excluir que isso possa acontecer, dadas as desproporções e a irracionalidade do sistema) mas porque os limites da demanda são o mecanismo chave, fundamental, através do qual se manifesta concretamente, na prática do capitalismo, a tendência à queda da taxa de lucro dentro do sistema.

As crises não acontecem centralmente, como pensam os teóricos sub-consumistas, porque não é possível realizar todo o valor contido nas mercadorias dado o limite da demanda; mas sim porque, dada a diminuição da quantidade de trabalho humano (único criador de valor) que compõe a produção de mercadorias, mesmo com todo valor sendo realizado ele é tão pequeno que é incapaz de financiar a continuidade do ciclo econômico em expansão. No entanto, é através da diminuição e contração do mercado consumidor pelo aumento da composição orgânica do capital que esse processo se impõe na realidade, mesmo para aqueles que ignoram ou negam a teoria do valor, como são os “agentes econômicos” imersos nas formas invertidas e pseudo-concretas de manifestação da realidade capitalista.

É essa imposição do caráter aparentemente abstrato da teoria do valor e da consequente teoria da queda tendencial da taxa de lucro a partir da forma bastante concreta da contração relativa do mercado consumidor com o aumento do desemprego causado pelo avanço tecnológico também o fator que explica que esse processo se dá através de irrupções violentas, e não num processo gradual e linear. A diferença entre o valor total das mercadorias e seu preço de mercado (o segundo determinado pelos ciclos econômicos anteriores, e sua antiga relação entre oferta e demanda, determinada essa por sua vez por uma antiga composição orgânica do capital) só se impõe ao olhos e aos sentidos, à racionalidade reificada, do capitalista quando ele não encontra mercado para a realização do preço de suas mercadorias, determinado pelo antigo contexto de produção. Por isso as crises aparecem como crises de superprodução e dessa maneira que se produz, de forma violenta, uma correspondência entre os valores totais e os preços totais das mercadorias.

As barreiras para a possibilidade de que o setor I da economia, produtor dos meios de produção, possa compensar a longo prazo os limites da demanda dada pela contração do mercado consumidor

As saídas que buscaram algumas escolas de pensamento, como os chamados ‘marxistas legais’ russos no final do século XIX, contra esse aspecto dos limites da demanda efetiva como um dos fatores explicativos das crises capitalistas, contra interpretações mais superficiais das teorias sub-consumistas (como eram as interpretações dos ‘populistas’ russos com os quais eles se embatiam), onde não há limite na demanda efetiva, pois essa demanda pode ser sempre financiada por um aumento do aparato produtivo, por um aumento da demanda do setor I da economia, produtor de meios de produção, onde “máquinas produzem máquinas para produzir mais máquinas” (como na fantasia do economista russo Tugan-Baranovsky³), apesar de relativamente legítimas no contexto daquele embate teórico, são erradas em suas conclusões harmonicistas, que negam a necessidade das crises no capitalismo e os limites da demanda nesse processo.

Esse tipo de perspectiva erra pois esquece que o capitalismo, apesar de todas as suas inversões e reificações, não é um sistema de ficção científica, onde máquinas se auto-replicam como que por uma vontade própria, mas uma forma humana de metabolismo social, e que portanto as formas humanas de consumo tem uma influência direta sobre as formas de reprodução do sistema (mesmo que essa influência se dê de modo estranhado e reificado).

Por mais que num primeiro momento, durante alguns ciclos econômicos, a produção de novas forças produtivas, trocas internas ao setor I da economia, produtor dos meios de produção, possa ser fator para superar os limites do mercado consumidor final, pois efetivamente “máquinas vão produzindo máquinas para produzir mais máquinas” (ou qualquer outra forma de aumento do aparato produtivo que num primeiro momento parece consumir força produtiva para sua produção sem, por alguns ciclos econômicos, aumentar a oferta de produtos para o consumidor final, como uma usina hidroelétrica, uma estrada, uma grande ampliação sistema de transporte, etc) num momento futuro, mais ou menos distante, quando terminados esses grandes projetos, eles aumentarão sobremaneira a oferta de produtos que tem que encontrar demanda, possibilidade de consumo, em consumidores finais, humanos.

Dado que o próprio investimento nesses setores e suas trocas internas tende a ter aumentado a composição orgânica do capital na economia de conjunto, e com isso aumentado o desemprego estrutural, esse momento tende a ser de uma ainda mais profunda crise do sistema. A saída que parecia se colocar (o investimento do excedente na auto-reprodução do setor I da economia, produtor dos meios de produção) assim é só forma temporária, que prepara a reprodução de crises ainda mais violentas, profundas e extensas.


1- https://quilombospartacus.wordpress.com/2022/08/23/debate-com-michael-heinrich-fred-moseley-e-ricardo-bellofiori-em-defesa-da-teoria-da-queda-tendencial-da-taxa-de-lucro/

2- https://quilombospartacus.wordpress.com/2017/05/19/debates-sobre-acumulacao-economica-na-russia-lenin-os-populistas-e-o-marxismo-legal/

3- https://quilombospartacus.wordpress.com/2017/05/19/a-diferenca-entre-as-teorias-da-demanda-efetiva-em-rosa-luxemburgo-e-keynes/

4- https://quilombospartacus.wordpress.com/2018/11/11/marx-keynes-e-kalecki-debates-sobre-o-ciclo-economico-e-suas-crises-parte-i/

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